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  • Foto do escritorRicardo Anselmo de Castro

PRIORIZAR DOENTES NUM SERVIÇO DE URGÊNCIA

Atualizado: 6 de jul. de 2022


O artigo procura mostrar que existe uma forma muito simples, totalmente justa e lógica para a priorização correta de doentes, à chegada de um serviço de urgências.


Palavras-chave: sistema de priorização, buffer, tempos de espera, hospital


Criança numa cama de hospital com médico


Enquadramento

Quando entramos num serviço de urgência, sabemos bem qual é o procedimento inicial: dirigimo-nos à secretaria para confirmar os dados pessoais, depois esperamos pela triagem, a triagem é feita e, já em posse de uma pulseira de cor, esperamos um pouco, e esperamos mais um pouco, e mais um pouco e só mais um pouco para então sermos observados por um médico.


A triagem de Manchester tem toda a lógica. Existem pulseiras de várias cores e cada uma representa a suposta criticidade do doente. Os números referem-se ao tempo máximo, em minutos, sob o qual o doente deve ser atendido.

Código de cores das pulseiras utilizadas na triagem em serviços de urgência nos hospitais.

Fig. 01. Código de cores das pulseiras, aquando da triagem de um doente e tempo máximo de espera «permitido», em minutos.


As cores vermelha e laranja são tão extremas que o sistema de priorização é só um: ‘deixem tudo o resto e vão observar já esse doente!’ (embora já tenha assistido, infelizmente, a alguns doentes com pulseira laranja que tiveram que esperar talvez 30 minutos ou mais). O âmbito do artigo é, por isso, a gestão de todos os doentes num serviço de urgência, para todas as cores, com exceção da vermelha.



Descrição do problema

Se todos os doentes chegassem ao mesmo tempo ao serviço de urgências era fácil decidir quem primeiro chamar, pois só haveria um critério de priorização: a cor da pulseira. Um doente com pulseira amarela estará sempre à frente de um verde. A priorização começa a tornar-se mais complexa e subjetiva, quando nos apercebemos que existe um segundo fator de decisão: a hora de chegada do doente ao serviço. Em muitos hospitais, o algoritmo de escolha baseia-se…no critério do próprio médico. Este olha para o sistema, vê uma lista de doentes que estão em espera e resolve chamar um específico, porque sim. Qual o seu critério de escolha? Bom, depende, por norma os médicos são mais sensíveis à cor da pulseira do doente. Mas já sabemos o que vai acontecer àquele infeliz que recebeu, por exemplo, uma pulseira verde ou azul e que está totalmente cansado de esperar. Quando o doente resolve reclamar, fazendo-se ouvir, um profissional de saúde informa os médicos de que há uma pessoa muito insatisfeita e, com alguma sorte, lá acabará por ser chamado.


Não só este sistema de priorização não é propriamente justo, nem objetivo, como também não ajuda a reduzir o tempo médio de espera no serviço, porque a ordem pela qual um doente é chamado não é indiferente para o valor dessa métrica (ou KPI). Por outro lado, estamos a consumir energia aos próprios médicos, sempre que os obrigamos a tomar a decisão ‘que próximo doente chamar?’, no decorrer do seu turno. Esta energia deveria ser antes canalizada para o próprio diagnóstico, reduzindo-se com isso, um pouco do seu cansaço. Se um sistema de prioridades tem impacto na satisfação do doente e alivia (nem que seja um pouco) a carga dos profissionais de saúde, então parece haver relevância na pergunta seguinte:


será possível criar uma única lista de priorização, totalmente justa e lógica, onde uma criança de cinco anos saberia igualmente responder ‘que próximo doente chamar’? Será possível ter um sistema desses?

É claro que sim.



Direção da solução

Repare-se que a triagem de Manchester já está a ditar as expetativas do doente. Se informado, ele saberá que terá que esperar até duas horas, no caso de ter recebido uma pulseira verde. Por outras palavras, o serviço de urgências, para esse doente, tem um buffer de tempo igual a duas horas. Se o doente for visto imediatamente na altura em que saiu da triagem, então o consumo desse buffer é de 0%. Se o doente foi visto uma hora depois de ter saído da triagem, então o consumo do buffer é de 50%. Se foi visto duas ou três horas depois, o consumo do buffer é de 100% e 150% respetivamente. A fórmula é, por isso, muito simplesmente:

Fórmula do consumo do buffer
Gráfico com exemplo consumo de buffer

Fig. 02. Um doente sai da triagem, precisamente às 9h00 e agora são 9h30, o que leva a um consumo do seu buffer, até ao momento, de 30 / 120 = 25%.


Com esta informação estamos agora em condições de generalizar e aplicar o cálculo do consumo dos buffers a todos os doentes. Por exemplo, imagine-se que é 12h30 e é possível chamar um próximo doente. Neste momento há três em espera. Qual dos três deve ser chamado, em primeiro lugar? Para isso precisamos saber a hora de saída de cada um deles da triagem (e que sabemos) precisamos saber a cor da pulseira (e que sabemos) e a hora atual (e que também sabemos)!


Gráfico com exemplo das horas da chegada de doentes e buffers respetivos.

Fig. 03. Chegada dos doentes e buffers respetivos. Neste momento são 12h30.


Tabela com cálculo da percentagem do consumo do buffer de cada doente

Fig. 04. Cálculo da percentagem do consumo do buffer de cada doente (lista que deve estar sempre priorizada do maior para o menor valor).


Não há dúvida que o próximo doente a ser chamado é o da pulseira azul, ficando a sobrar o verde e o amarelo. Mas, será que o próximo a ser chamado é o verde por ter uma percentagem de 60% (já que o amarelo está em 50%)? Não necessariamente, porque a taxa de consumo do buffer do amarelo é superior. Imagine que o próximo doente só é chamado daqui a 15 minutos, ou seja, às 12h45. Nessa altura, e recalculando os buffers vemos que:


Tabela com a atualização do cálculo da percentagem do consumo dos buffers

Fig. 05. Atualização do cálculo da percentagem do consumo dos buffers.


Em 15 minutos, o amarelo subiu 30 pontos percentuais e o verde subiu 20 pontos percentuais. Perante este empate, será lógico chamar o doente da pulseira amarela. Estando a lista de priorização sempre atualizada (ao minuto) e ordenada do maior para o menor valor da percentagem do consumo do buffer até uma criança de 5 anos saberá quem chamar: o doente que aparece sempre na primeira linha!



Planeamento da simulação

Para provar que a direção da solução funciona e faz sentido, façamos um desenho de experiências com três variáveis explicativas independentes entre si, a partir de uma simulação. As variáveis são:

A. Capacidade do serviço

B. Tipo de procura

C. Tipo de priorização


Mais concretamente, queremos entender, no período analisado, o impacto de cada uma das variáveis nas seguintes respostas:

  • Percentagem do consumo do buffer

  • Tempo de espera médio

  • Número de doentes atendidos


De forma ilustrativa, a simulação permitirá responder a perguntas do tipo: será que o tipo de priorização usado tem impacto no número de doentes atendidos?


Ou seja, cada uma desta perguntas é transformada em testes de hipóteses do tipo:

H0: o tipo de priorização não afeta o número de doentes atendidos.

H1: o tipo de priorização afeta o número de doentes atendidos.


Sempre que o valor-p for inferior ao nível de significância (alfa de 0.05 neste caso), então consideraremos, em termos práticos, que as diferenças estatisticamente significativas são também operacionalmente significativas. Por outras palavras, o fator em causa ajuda mesmo a explicar uma das respostas sob estudo.


Olhemos em pormenor para as três potenciais variáveis explicativas:

A capacidade do serviço (por exemplo, ter mais ou menos médicos disponíveis) é um fator controlável a dois níveis – baixo e alto. Umas vezes a simulação decorrerá com uma capacidade média instalada de 40% (do seu potencial) e outras a 60%. Fala-se em capacidade média, porque impusemos ao modelo uma variação na própria capacidade. O tipo de procura é também um fator controlável a dois níveis – normal e pandémico. Ou seja, quanto mais graves os casos, maior a percentagem de cores quentes (laranjas e amarelos) face às cores frias (verdes e azuis).

Tabela e gráfico com a proporção das pulseiras num ambiente normal e pandémico.

Fig. 06. Proporção das pulseiras num ambiente normal e pandémico (com um exemplo gráfico para o caso pandémico).



Finalmente, o fator tipo de priorização é composto por três níveis – cor, tempo de espera (lead time) e buffer. Ou seja, haverá na simulação vezes em que se chama o doente em função da cor da pulseira, outras vezes em função do tempo de permanência e outra pelo consumo do seu buffer.


No total, há 12 combinações possíveis (2x2x3). Estabelecendo 50 repetições para cada combinação e replicando cada combinação 5 vezes, temos um total de 3000 simulações.



Execução da simulação

Para cada janela temporal de 15 minutos, o número de chegadas às urgências segue uma distribuição de Poisson. Neste caso, o valor médio é próximo de 1, mas não é impossível que cheguem 6 ou 7 doentes em 15 minutos. Antes de apresentarmos os resultados, sugerimos a visualização do vídeo que mostra, precisamente, a sequência das ações tomadas no decorrer da simulação.


Fig. 07. Excerto de uma simulação (exemplo de quando se está a usar a priorização, segundo a percentagem de consumo do buffer). Por exemplo, acompanhe a evolução do doente 14.



Resultados da simulação

Depois de se correr as 3000 simulações e confirmar que todos os resíduos apresentam homocedastecidade e seguem aproximadamente uma distribuição normal podemos dizer o seguinte:

No que diz respeito à variável de saída “% do consumo do buffer” verifica-se que qualquer um dos três fatores tem impacto (diferenças estatisticamente significativas dadas pelas barra que ultrapassam a linha vermelha a tracejado). Idealmente, queremos operar com os níveis que conduzem a percentagens de consumo inferiores.

gráfico com valores médios do consumo do buffer em função dos efeitos principais de cada fator explicativo
Gráfico 2 com valores médios do consumo do buffer em função dos efeitos principais de cada fator explicativo

Fig. 07. Valores médios do consumo do buffer em função dos efeitos principais de cada fator explicativo. Lembrar que consumos superiores a 1 são uma violação à triagem de Manchester.


No que diz respeito à variável de saída “tempo de espera” verifica-se que apenas o fator capacidade e o fator tipo de priorização têm impacto (diferenças estatisticamente significativas). O tipo de procura não influencia os tempos de espera, porque nesta variável o volume médio de pessoas a chegar às urgências não varia. Estamos simplesmente a mudar a percentagem das cores das pulseiras. Naturalmente que uma priorização feita pelas durações dos tempos de espera (e chamando os doentes do maior para o menor tempo de espera) é a que mais faz reduzir as esperas. Mas não nos esqueçamos contudo que os doentes não estão em pé de igualdade quanto à sua criticidade. Isto é, na fila para comprar pão faz sentido uma lógica FIFO, mas não é o caso aqui. A priorização pela percentagem do consumo do buffer deve ser por isso vista, como a priorização mais racional e justa, trazendo-nos o segundo melhor resultado possível.

Gráfico 1 com o efeito nos tempos de espera
Gráfico 2 com o efeito nos tempos de espera

Fig. 08. Sem surpresas, a capacidade e o tipo de prioridade têm um impacto claro nos tempos de espera.

Finalmente, e no que diz respeito à variável de saída “número de doentes atendidos” verifica-se que apenas o fator capacidade tem impacto (diferenças estatisticamente significativas). O tipo de procura e o tipo de priorização são irrelevantes.

Gráfico 1 com o número de doentes atendidos
Gráfico 2 com o número de doentes atendidos

Fig. 09. Apenas o fator capacidade tem impacto no número de doentes observados.



Conclusão

Não tendo a solução um impacto no número de doentes observados tem, sem dúvida, na satisfação do doente, sem prejuízo para as restantes partes interessadas. Por outro lado, o tempo de permanência será tendencialmente menor porque a maioria dos médicos é mais sensível a uma priorização por cor da pulseira e menos por hora de entrada do doente. Ora, é também sabido que quanto menos tempo se está num hospital, menor a probabilidade de apanharmos doenças. E, se a solução é mais simples do que a atual e não requer investimento, uma pergunta verdadeiramente incómoda agora aparece: se é tudo tão bom, o que estará a impedir os hospitais de adotarem este sistema de priorização? O algoritmo é demasiado simples, funciona, não é preciso tecnologia adicional, qualquer um entende o conceito e acredito que os doentes o considerem bastante justo. Então, por que não está isto implementado há já muito tempo?


Um mistério. Ninguém fala sobre tal.



REFERÊNCIAS

[1] Cox III, J., Schleier, J. (2010). Theory of Constraints Handbook. McGraw-Hill.







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